Como o Movimento Unido dos Camelôs resiste há 20 anos de repressão aos trabalhadores
Era 5:00 da manhã de uma quinta-feira quando quatro mulheres se acorrentaram aos portões do Palácio Pedro Ernesto, sede do poder legislativo da cidade do Rio de Janeiro. Maria de Lourdes do Carmo, a Maria dos Camelôs, Cristina Oliveira, Aline Araújo e Alessandra Correa, são camelôs e fazem parte do Movimento Unido dos Camelôs (MUCA). Elas se acorrentaram em protesto às frequentes agressões e perseguições de agentes da prefeitura aos trabalhadores ambulantes. O protesto durou 14 horas debaixo de muito sol. O que levou 4 mulheres mães de família a isso? Maria e Aline em protesto na Câmara Municipal.
Nos últimos meses a repressão aos trabalhadores ambulantes vem se intensificando. Dessa vez o principal alvo da repressão aos trabalhadores é o bairro de Copacabana, na Zona Sul, um dos mais famosos pontos turísticos da cidade . A Operação Verão chegou para trazer “ordenamento”, como diria o secretário da secretaria de ordem pública(SEOP), Brenno Carnevale. Mas, na verdade, a operação verão trava o trabalho e causa atrito entre camelôs, Guardas Municipais e agentes da SEOP. Terminando geralmente com camelôs hospitalizados, detidos e sem seu material de trabalho.
Protesto de camelôs na praia de Copacabana
Projeto Reviver Centro
A prefeitura de Eduardo Paes que apresentou no início de seu mandato o projeto Reviver Centro retomou a política de perseguição aos camelôs que esteve presente em seus mandatos anteriores (2009-2016).
Ao mesmo tempo que a prefeitura faz um projeto com o objetivo de revitalizar e ter a região do centro do Rio como local de moradia, esse projeto afasta os trabalhadores informais, que além de estarem de fora das políticas habitacionais do Reviver Centro também são impedidos de trabalhar com perseguições quase que diárias.
“O prefeito quer transformar o centro da cidade em moradia mas essa moradia não é para pobre, então o que a gente vê é que o prefeito quer fazer uma nova especulação imobiliária com o Centro da cidade quer fazer o que ele fez nos seus anos de prefeito de 2009 até 2016” Destacou MariaMaria dos Camelôs em uma manifestações organizada pelo MUCA
QUESTÃO LEGAL E RESISTÊNCIA
Quando se fala em regularização do trabalho se fala não apenas em liberar um espaço para o trabalho mas também em acesso a direitos, como previdenciário, trabalhista, e de saúde e até mesmo de questões mais diretas ao trabalho ambulante, como quais tipos de produtos podem ser comercializados. A advogada Ana Cecília Bonan, da Comissão de Direitos Humanos(CDH) da Ordem dos Advogados do Brasil(OAB) destaca que é muito importante que esse debate não seja imposto pelo poder público, mas que seja feito um amplo debate em que a categoria seja de fato ouvida. Protesto de camelôs na prefeitura
Segundo Cissa, como prefere ser chamada, a perseguição aos camelôs começou ainda no primeiro governo César Maia em 1993 com a criação da Guarda Municipal, ainda de forma irregular. O MUCA foi criado em 2003 nesse contexto de agressões e perseguições aos trabalhadores ambulantes.
Cissa fala durante protesto dos camelôs na Cinelândia
Em 2018 foi sancionada a lei 6426/2018 de autoria do ex-vereador e atualmente deputado federal Reimont(PT). Na qual o poder público deve regulamentar a administração de depósitos voltados para trabalhadores ambulantes. Entretanto, essa lei nunca foi regulamentada pela prefeitura. Segundo Cissa essa é uma estratégia da prefeitura para inviabilizar o trabalho dos camelôs.
Segundo um estudo do Observatório das Metrópoles 68% dos ambulantes não tem licença, desses 43% se inscreveu pedindo licença mas nunca conseguiu receber. O mesmo estudo destaca que 55% dos camelôs deixam suas mercadorias e barracas em depósitos.
“nunca teve a regulamentação do depósito então é muito estranho porque vai dizer que o camelô pode comercializar na rua só que um cara que mora [por exemplo] em bonsucesso e ganha uma licença para trabalhar vendendo milho em copacabana, como é que ele vai levar todo dia o carrinho dele para botar o milho dele na praia em copacabana? A lei dos depósitos só foi aprovada em 2018, mesmo assim a gente tá em 2023 ela não foi regulamentada pelo poder público… Por que que a prefeitura não faz isso? Porque essa é a forma que a prefeitura tem de fazer o controle também das ruas e fazer apreensão em atacado. Exemplo muito claro disso foi o estouro daquele depósito da lapa na feira noturna. Aquele estouro aconteceu numa sexta-feira de manhã e foi muito estranho porque aconteceu estouro e ali ficam as mercadorias da galera da feira noturna e também da rua Mem de Sá … [o MUCA] Fez ato e não conseguiu pegar de volta no dia a mercadoria mas o domingo a CCU(Coordenadoria de Controle Urbano) me mandou mensagem falando que os caminhões poderiam pegar na segunda-feira, inclusive devolveram até as garrafas de vidro que eles não costumam devolver. Eu achei tudo muito estranho e fui pesquisar o que que aconteceu na lapa naquele final de semana e descobri que naquele final de semana tava tendo festival na Lapa e esse festival era patrocinado pela Budweiser. Aquele estouro de depósito aconteceu para garantir o lucro da Budweiser … Os estouros de depósito acabam sendo estratégicos para prefeitura para prefeitura fazer o controle do atacado da rua então assim ah eu vou ter um evento ou o carnaval e o que se faz? Estouro depósito de lugares estratégicos” Disse Cissa
DENÚNCIAS
A página do MUCA denuncia essas agressões. Um desses vídeos mostrava Lucas Yan, um camelô vendedor de balas nas praias e nos ônibus da cidade. Lucas foi agredido por agentes do Grupo de Operações Especiais(GOE) da Guarda Municipal(GM) com um golpe de cassetete na cabeça que o arremessou contra um ônibus. Lucas depois denunciou que foi torturado após ser algemado pelos guardas.
Nos últimos anos há uma tentativa recorrente de armar a Guarda Municipal. O projeto de emenda à lei orgânica número 23/2018 apoiado pelo prefeito Eduardo Paes de autoria do vereador Jones Moura(PSD) frequentemente reaparece como uma ameaça.
Adesivo #GuardaArmadaNÃO ao fundo Maria dos Camelôs fala durante evento da CDH/OAB
Também de acordo com estudo do Observatório das Metrópoles 65% dos camelôs teve mercadoria apreendida pela Guarda Municipal enquanto 57% sofreram agressões. Por isso o não armamento da Guarda Municipal é uma das maiores lutas do movimento.
Agressões sofridas pelos camelôs, por sexo – Camelôs no Centro do Rio de Janeiro, RJ . Fonte: Pesquisa do Observatório das Metrópoles – Projeto Morar, Trabalhar e Viver no Centro, 2018 Observação: Números apresentados com base em 85 respondentes que afirmaram ter sofrido agressão no exercício do trabalho. 10 pessoas não responderam a essa questão. Alguns entrevistados relataram ter sofrido mais de um tipo de agressão.
Atualmente os ambulantes são tratados como responsabilidade da Secretaria de Ordem Pública(SEOP) , o MUCA acredita que seria mais adequado que os camelôs fossem acompanhados pelas Secretaria Municipal de Trabalho e Renda(SMTE) e Secretaria de Assistência Social Protesto de camelôs pelo direito ao trabalho.
“A gente é fiscalizado pela secretaria de ordem pública, mas nós camelôs somos trabalhadores então a gente tem uma briga muito grande também da prefeitura para a gente ser fiscalizado como problema de ordem pública, mas para sermos tratados por uma pasta de trabalho e renda, não por um órgão de repressão que é a SEOP. A gente não quer papo com a SEOP, a gente não quer papo com o Brenno, a gente não quer papo com a guarda Municipal, a gente quer ser tratado como trabalhador” Disse Maria
Nesse contexto cabe ao movimento se auto organizar para trazer um tratamento mais humano aos trabalhadores informais. Assim militantes de fora da rede de camelôs se unem ao MUCA nesse esforço, como por exemplo na preocupação com a saúde desses trabalhadores.
SAÚDE DO TRABALHADOR
A Assistente Social, residente em saúde do trabalho, pelo Cesteh/Ensp/Fiocruz, Thais Lisboa, que trabalha com camelôs, têm identificado uma série de questões onde a não regulamentação dos trabalhadores ambulantes contribui para a piora da saúde desses trabalhadores.
De acordo com Thais muitos desses trabalhadores se automedicam com ansiolíticos e têm grande sofrimento psicológico, principalmente ligado a preocupações envolvendo seu próprio trabalho. A falta de segurança tanto financeira quanto física é uma dessas questões, o medo de perder suas mercadorias, dias de trabalho ou até serem agredidos foram fatores relatados a ela durante reuniões com os trabalhadores.
Thais, Cissa e Maria em evento da CDH/OAB
Thais relata ainda que a falta de banheiros faz com que camelôs, principalmente mulheres, desenvolvam inflamações e infecções urinárias. Ela sugere que uma atuação do poder público fornecendo pontos de apoio seria uma forma de prevenir essas doenças.
O estudo do Observatório das Metrópoles destaca que, 38,5% dos camelôs tem dificuldade para acessar banheiros, quando se fala das mulheres esse numero sobe para 46%.
A partir do próximo ano a Fiocruz deve estabelecer um programa em parceria com o MUCA voltado para questões referentes à saúde do trabalhador camelô.
“[A Fiocruz deve] pensar como sensibilizar os serviços de saúde especialmente de urgência emergência e atenção básica. Olhar para o trabalhador camelô e fazer essa relação ou pelo menos levantar suspeita para encaminhar para a gente de que [exemplo] determinada cistite que essa camelô tem, que fica 12 horas segurando o xixi pode ter a ver com o processo de trabalho dela. Então vamos pensar isso e vamos investigar isso porque às vezes por exemplo se essa pessoa contribui para o inss mesmo como autônomo tem ali um direito, se ficar por um momento incapacitado no trabalho ter direito a um benefício previdenciário… A falta regulamentação do trabalho acaba fazendo com que essas pessoas por tamanha incerteza econômica não saberem se vão conseguir ter o seu sustento e não contribuírem para o para previdência social nem como autônomos” Disse Thais
HISTÓRIA DO MOVIMENTO
O Movimento Unido dos Camelôs (MUCA) tem início em 2003 após Maria dos Camelôs ser agredida por guardas municipais. Na época, Maria estava voltando para o trabalho, apenas 15 dias após realizar uma cesariana. Foi neste dia agredida. Transformando sua indignação em luta, Maria funda o MUCA como forma de organização e resistência da categoria. 20 anos depois sua história se confunde com a do movimento em que coordena. Camelôs protestam em Copacabana
Atualmente o MUCA é um dos movimentos populares mais ativos nas ruas do Rio. Neste ano de 2023, camelôs e outros apoiadores do movimento já participaram de mais de uma dezena de protestos. São noites em delegacias, hospitais, protestos na câmara. Muitas vezes, Maria chega quase que solitária, mas ela está sempre lá, com a camisa amarela do movimento, a camisa que diz “Lute como uma camelô” ou a camisa laranja do movimento trabalhadores sem direito, no qual o MUCA ajuda na construção. Maria em um protesto do MUCA fechando a avenida Men de Sá após um estouro de depósito e apreensão de mercadorias de camelôs
Hoje as principais bandeiras do movimento são a luta contra o armamento da Guarda Municipal, pela legalização dos depósitos e pela concessão de novas licenças de trabalho pela prefeitura. Camelôs se manifestando na praia de Copacabana
A luta pelo trabalho segue forte com o MUCA, Maria, Aline, Cristina, Alessandra e tantas outras e outros camelôs se mantém diariamente não só lutando por si mas por sua categoria. Apesar de toda a dificuldade de se opor a repressão histórica contra trabalhadores informais.
Texto e Fotos: Vinicius Ribeiro/Fotoguerrilha